13.12.09

O casamento de Senna






PEDIDO NO MOTEL

Senna e Lilian tinham 21 anos quando engataram o namoro relâmpago. Ela o tratava por “Beco”, um antigo apelido familiar. Ele a chamava pelo nome.
Lilian se recorda do dia do pedido de casamento, ocorrido no quarto de um motel na Serra da Cantareira, logo depois de fazerem amor pela primeira vez. “Fomos passear e acabou acontecendo”, diz.
O início da vida a dois seria em Norwich, uma pequena cidade a cerca de duas horas de Londres. Antes da viagem, tiveram a noite de núpcias, na suíte presidencial do Maksoud Plaza. “Entrei no quarto carregada nos braços dele”, diz. “Senna não era romântico, mas naquela ocasião fez tudo direitinho.”
O desembarque em terras inglesas foi uma seqüência de contratempos. A casa alugada, de dois dormitórios e um jardim imenso, encontrava-se em estado deplorável. A energia elétrica estava cortada e havia vazamento de gás. A precariedade doméstica fez com que o casal pernoitasse na residência de Ralph Firman, proprietário da Van Diemen, escuderia pela qual Senna disputaria o Campeonato Inglês de Fórmula Ford.
No dia seguinte, providenciaram o conserto, compraram cama de casal, e adquiriram um velho Alfa Romeo vermelho. De comum acordo, ficou definido que Lilian controlaria o caixa do casal. A verba vinha do salário que o marido já ganhava como kartista. Os gastos eram anotados numa tabelinha. “Dava para comer bem e bancar os custos do combustível”, relembra.

FALSA GRAVIDEZ Com Senna dividido entre as pistas e os boxes

Lilian vivia um cotidiano de dona-de-casa. Lavava, passava e cozinhava. Fazia, com o esmero que a sogra lhe recomendara, duas preferências gastronômicas do cônjuge: o bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro e o macarrão regado a molho de tomate.
O único passatempo era acompanhá-lo aos treinos, onde atuava como cronometrista. Nada de passeio, cinema ou restaurante. Essa toada predominou nos oito meses que moraram em Norwich. “Ele não queria se divertir, só pensava em correr e em mais nada”, admite Lilian. “Apesar dessa dedicação, fazíamos amor todos os dias.”
Com três meses, a depressão amargava a convivência do casal. Cada um tinha seu motivo particular. “Ele chegava todo fim de tarde, cansado e triste. Me olhava com carinho e me colocava no colo. Dizia que por trás daquele circo do automobilismo havia muita falsidade e concorrência”, recorda-se Lilian. “Sentávamos no sofá, um olhava para o outro, e chorávamos. Foram muitos dias assim.”
Como não dominava o idioma e pouco saia de casa, ela dependia dele para desabafar. Sentia-se dominada pela solidão. Nesses instantes, implorava para que os pais e sogros telefonassem para lá. “Olhava aquela neblina, a neve, e chorava muito. Acho que continuávamos unidos, porque não tínhamos a quem recorrer.”
No aniversário de seis meses de casados, houve uma crise que desnudou a fragilidade da relação. Diante de um ciclo menstrual atrasado, ela suspeitou de gravidez. E comunicou o fato ao marido. O casal estava no Alfa Romeo, indo em direção ao circuito. Senna nem estacionou o carro no acostamento da estrada para emendar a resposta. Disse que, se o exame desse positivo, a mulher retornaria ao Brasil para criar o filho em São Paulo. Ele continuaria na Inglaterra. “Gostaria de ter escutado outra coisa, mas hoje consigo entendê-lo”, confidencia. Lilian não estava grávida, mas o episódio acendeu o fantasma da separação.
Em que pese a decepção, ela continuava apaixonada e ele mostrava-se frustrado na carreira. Nem mesmo a conquista do título inglês de Fórmula Ford saciou o descontentamento de Senna. As 12 vitórias em 18 corridas não atraíram novos patrocinadores. “Beco achava que não teríamos mais dinheiro para nos sustentar na Europa, e por isso falava em largar tudo.”
O piloto cumpriu a promessa. Encerrada a temporada, um vôo da Varig os trouxe de volta em outubro de 1981. Havia decidido abandonar o automobilismo. Aterrissou em São Paulo com o propósito de administrar a loja de material de construção da família. Intimamente, a mulher comemorava. “Vislumbrava a chance de ser feliz, ter um casamento arroz-com-feijão como outro qualquer, cuidar da minha casa e ser mãe.”
Senna acertou o salário com o pai, Milton, e o casal começou do zero num apartamento alugado de três dormitórios na Serra da Cantareira. Enquanto a obra não ficava pronta, eles dormiam na casa dos sogros. O marido dava expediente de oito horas na loja do Parque Novo Mundo, gerenciando a venda de sacos de cimento, tijolos e telhas. Lilian caprichava na decoração da nova morada e comprava móveis e eletrodomésticos. Na sala, ela colocou uma estante para abrigar os troféus de Senna.
Talvez por esta prosaica decisão, Lilian perdeu o marido e o Brasil ganhou um ídolo. Ao entrar no ambiente, Senna elogiou o trabalho da mulher e parou na estante para admirar os prêmios de sua breve carreira. “Depois, ele ficou quieto, não disse mais nada.” Naquele fim de tarde, comunicou que regressaria ao automobilismo inglês e ela ficaria em São Paulo.
“O mundo desabou na minha cabeça. Ele disse que depois viria me buscar.” Lilian ficou em frangalhos. Arrasada, entregou o apartamento, pagou a multa contratual e devolveu os móveis. Em fevereiro de 1982, Senna entrava no avião que o levaria de volta à Europa. “Eu arrumei as malas dele. Cuidei de tudo até o último segundo”, diz Lilian. “Mas sabia que meu casamento havia terminado naquele último abraço.”


ENCONTRO FRIO Três meses depois, veio a separação definitiva, sentenciada por telefone. “Chorei durante um ano seguido”, revela Lilian. “Nem tinha vontade de tirar a camisola.” Nesse período de hibernação, os sogros impulsionaram a parte jurídica da decisão do casal. Por fim, em 11 de fevereiro de 1983, encontraram-se na 1ª Vara Distrital da Casa Verde, em frente ao juiz, na audiência que determinou a separação consensual.
Lilian trajava um terninho azul, presente da sogra. Senna apresentou-se de jeans, camiseta e tênis. Trocaram apenas um formal aperto de mãos. Nem se olharam. Depois, viram-se apenas mais uma vez, num restaurante na avenida Brás Leme, no bairro de Santana. Ficaram juntos por meia hora. Ela tomou um suco de laranja. Ele bebeu água. “Não falamos do passado. Foi um reencontro frio, sem emoção e com poucas palavras.” Até o dia da morte de Senna, ela só voltou a vê-lo pela televisão.
Um ano depois, Lilian iniciava a reconstrução da sua vida, embalada pelo segundo casamento. Dessa união nasceu Carlos Candal Neto, 16 anos, o Cacá, que estuda em Boston, nos Estados Unidos. Ela vendeu roupas e trabalhou em lojas até formar-se no curso de Belas Artes, na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), onde se especializou em decoração.
Mais vaidosa que na juventude, hoje malha três vezes por semana. Esculpiu os músculos sob a orientação de um personal trainer, e esbanja forma física. São 53 quilos em 1,65m de altura. Retoca a raiz do cabelo pelo menos uma vez por mês. Ano passado, turbinou os seios com um implante de silicone. “Claro que eles são meus”, diverte-se.
As lembranças materiais desse romance repousam numa pasta azul, no apartamento onde Lilian mora no bairro de Perdizes. São algumas fotos do casamento, poucas reportagens, a certidão de casamento e a averbação da separação consensual. O único presente ofertado pelo ex-marido, uma correntinha de ouro, está numa caixinha de jóias. Daquela época, ela só lamenta não ter tido tempo para dar um neto à sogra. “A Zaza disse isso diversas vezes.”
E chora ao relembrar do acidente que vitimou o seu Príncipe Encantado, como ainda prefere defini-lo. “Ayrton Senna era ídolo da povo. Sempre separei bem os sentimentos”, diz. “Mas naquele dia, em Imola, quem morreu foi o meu Beco.”

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